Lembranças que não ficam apenas na memória

 

     Ao passar em frente à farmácia próxima de casa, eu a vi. Lá estava nas primeiras prateleiras o motivo de todo reboliço por parte da imprensa e da sociedade em geral: "Lembrax, o estimulador de memória!". Minha curiosidade superou o alto preço do produto e acabei comprando-o. Depois de todas as notícias sobre suas conseqüências, como o fato de uma senhora de 75 anos ter jogado no lixo três baús contendo suas memórias e recordações, dizendo que não precisava mais daquilo e que se lembrava de tudo como se fosse ontem, somado à primeira cura de um enfermo do Mal de Alzheimer, imaginei que a tal pílula só poderia fazer bem.

     Voltei para casa procurando não falar com ninguém. Minha esposa e meu casal de filhos estavam assistindo televisão tranquilamente, então simplesmente disse que estava cansado e depois de receber um beijo de minha esposa fui para o quarto. Achei que seria uma boa idéia tomar a pílula e dormir, para verificar os efeitos pela manhã. Tratei então de toma-la e me deitar. Quase que instantaneamente adormeci e comecei a sonhar. Nos sonhos, eu discutia com minha mãe, apanhava de meu pai, brincava com um cachorrinho, levava novamente uma bronca de minha mãe, sentava em uma calçada e começava a chorar.

     De repente acordei assustado, com dores de cabeça, com minha esposa sentada ao lado, com uma expressão de choque no rosto, a mesma que pude notar nos rostos de meus filhos que me olhavam da porta do quarto.

     Era óbvio. Aquelas visões não eram sonhos e sim lembranças de minha infância e adolescência. Ao olhar para meu filho mais velho, me lembrei de meu rosto pintado, gritando em Brasília. Lembrei do provável dia em que ele foi feito, no banco de trás do meu antigo carro. Lembrei do quanto eu odiava aquele brinco que ele usava e seus longos cabelos. Lembrei do susto que levei ao saber que ele teria uma irmãzinha. Lembrei do quanto eu os amava...

     Saí atordoado de casa sem dar explicações. E andando sozinho naquela rua escura me lembrei do motivo pelo qual eu mais cedo, passando em frente à farmácia, em vez de estar em casa com minha família.

     Me lembrei que odiava minha vida. Minha repetitiva e monótona vida. Lembrando de minha infância e comparando com o presente momento, a única diferença era o papel que eu desempenhava. Antes eu era como meu filho, rebelde, cheio de novas idéias e formas de me exibir, querendo ganhar o mundo. Agora sou como meu pai, com um dia-dia patético, tentando fazer de meus filhos pessoas boas e felizes, mesmo que isso influêncie em meus gostos e em minhas vontades. Lembrei das coisas que meu pai fazia e falava para mim, que são as mesmas que faço e falo hoje para meu filho. Lembrei de minha juventude e vi meu filho adormecido dentro de minha mente. O tempo passa. Nada muda. E com esse pensamento na mente, me sentei na calçada e chorei, como a anos atrás.

     Hoje sei que ter tomado aquela pílula me fez dar maior importância ao meu passado. Porém, não significa que aprovei a pílula. Muitas lembranças ajudam realmente a construir nosso caráter e personalidade. Mas outras fazemos bem em esquecer, para que não venhamos a sofrer com elas.

     Me desculpei com minha família e eles me perdoaram, demonstrando a bela família que estava perdendo. Infelizmente meus pais já estavam mortos quando isso aconteceu, por isso nunca saberei se eles me perdoaram. Mas levo a esperança de que sim. E essa dor que sinto agora de arrependimento... Bom, essa será melhor eu tentar esquecer.

 

 

 

                                                Victor Augusto